quinta-feira, 28 de maio de 2009

http://www.cerescaico.ufrn.br/mneme/anais/st_trab_pdf/pdf_st2/leandro_surya_st2.pdf

MACRO-JÊ

Os rios São Francisco e Parnaíba foram as duas grandes vias de penetração para o colono no Estado do Piauí. As grandes propriedades não eram organizadas uniformemente como fazendas de gado. Esses domínios estavam arrendados ou subdividos em inúmeros currais. Um só fazendeiro normalmente possuía vários currais, dependendo da existência de pastos e água. De acordo com Porto (1974:64), a distância média de uma fazenda para outra era de três léguas, podendo existir uma légua de terra para uso comunal, entre as fazendas (TEIXEIRA DA SILVA, 1996:6; ROTEIRO . . . , 1900:89).
O processo de doações de sesmarias no Piauí foi o mecanismo jurídico que deu origem ao latifúndio. Dois sertanistas merecem destaque neste processo, Domingos Jorge Velho e Domingos Afonso Mafrense. “Há indicações, inclusive, de que os dois Domingos – Mafrense e Jorge Velho travaram luta antes de chegar a um acordo sobre as áreas reservadas à ação de cada um” (CASTELO BRANCO, 1990:31). Esta ocupação, porém, não se fez pacificamente. Os pimenteira, os gurguéia, os acroá, os caratin resistiam à conquista, até serem dizimados ou incorporados, transformando-se em vaqueiros ou boiadeiros nas caatingas, de acordo com a historiografia oficial. Os gurguéia atacavam, matando e afugentando o gado dos colonos, sendo reprimidos pelo paulista Estevão Ribeiro Baião Parente (PIRES, 2002: 63). José Martins Pereira D’Alencastre (apud BRANDÃO, 1995:45) descreveu como Domingos Afonso Serra e seu irmão Julião Afonso Serra, rendeiros de Francisco Dias de Ávila, armaram uma bandeira e entraram por terras de Pernambuco, perseguindo e conquistando alguns grupos indígenas da região, os que provavelmente resistiam de forma mais explícita ao avanço do colonizador:
... transpuseram os dois cabos a Serra do [sic] Dois Irmãos, e continuando a marchar para o Norte, descobriram as férteis terras que tinham o Canindé e seus afluentes...
De volta os conquistadores da empresa (...) cuidaram logo de tirar destes vastos terrenos o mais real e duradouro proveito.
Os dois irmãos criavam em terras alheias, de agora em diante, podiam povoar com seus gados, terras próprias, e talvez melhores... em 1676, pediram de sesmarias 40 léguas de terras, para situação de suas fazendas.
Os dados etno-históricos permitem localizar vários grupos indígenas no Estado do Piauí e seus arredores. Todavia, há uma imprecisão na nomenclatura utilizada. Mott (1979) comenta que “Gamela” era a designação dada pelos sertanejos aos índios Timbira, Acroá e Gueguê. De acordo com Oliveira (2000: 50), os Xavante e Xerente eram conhecidos por “Acuéns”. Hemming (1997: 121) aponta os Xicriabá e os Acroá com a denominação de “guenguéns”.
Desde o início da colonização do Brasil tem-se ocultado a diversidade étnica dos grupos indígenas que habitaram o Nordeste. A generalização dos diferentes
grupos pelos termos Tupi e Tapuia é apenas a ponta do “iceberg” do descaso e falta de interesse com a história destes povos9.
Costa (1980: 158), na sua introdução à arqueologia brasileira, apresenta os seguintes grupos no Piauí: os Teremembé, Kirirí, Sacamecran e Acroá, nas margens do rio Parnaíba. O autor destacou a família Jê, classificando, entre outros povos, os Timbira, os Aimoré-Botocudo, os Augé e os Temembé, além de alguns grupos que habitavam o interior de Pernambuco e Maranhão, que prestaram auxílio aos holandeses nas lutas do século XVII (1980: 160). Outra família citada por Costa (1980: 166) são os Kiriri ou Cariri, vítimas de muitas perseguições:
muitas eram as tribos da família Kiriri, sendo das principais os Teremembé que, desde o Itapicuru, ou o Gurupi até Camocim, estendiam o seu domínio, sendo em 1679 barbaramente perseguidos. Dos Teremembé, atacados por portugueses do Maranhão, que se faziam acompanhar de cento e tantos brancos e aproximadamente, quatrocentos e cinqüenta índios rivais, só escaparam, em uma maloca de trezentos, trinta e sete indígenas. Após essas atrocidades, em 1687, o padre Miguel de Carvalho aldeou os Teremembé no Ceará.
Nimuendaju (2002) apresenta o deslocamento de várias populações indígenas na área do Estado do Piauí. O autor localiza os Jaicós, em 1674, na região sudeste, margeando o rio Piauí, e indica sua movimentação, focalizando seu deslocamento para o norte, cruzando o rio Canindé e o rio Itaim, alcançando os limites com a Paraíba, nos séculos XVIII e XIX. Outro grupo indígena cuja movimentação Nimuendaju indica é o dos Timbira, que viveram próximos a Oeiras. Entre os anos de 1674, 1728 e 1786 este grupo se movimentou rio acima, o que poderia ter causado o deslocamento dos Guegué para o norte, entre 1765 e 1786, atingindo as margens do Parnaíba, em meados do século XIX. Oliveira chama a atenção para o fato de que muitos nomes das “tribos” citadas como existentes no Estado do Piauí não foram registrados por Nimuendaju em seu mapa etno-histórico e “outros restaram apenas
9 Puntoni (1997) destaca sobre esses termos: “Podemos notar que em relação a classificação dos povos indígenas, a literatura tem comumente se respaldado em generalizações recorrentes. Destaca-se recorrentemente a reposição da classificação desses povos em duas unidades culturais (ou mesmo raciais), que funciona como pólos antagônicos: os Tupi e os Tapuia. Assim, não seria afirmar que esse binômio tem sido a chave classificatória fundamental a perpassar a documentação e a historiografia, dos cronistas do século XVI até mesmo dos trabalhos coevos. Nesse particular, registro e interpretação se misturam, de tal maneira que não podemos mesmo dela prescindir.”
como denominações de localidades, como é o caso de Gilbué, situada no sudoeste do estado...” (2000: 53).
Três troncos lingüísticos parecem compor os diversos grupos na área do Piauí: oTupi, o Macro-Jê e, possivelmente, da família Karibe, o Caraíba ou karib. Os grupos do tronco Tupi localizavam-se nas margens dos rios São Francisco e Parnaíba, segundo Oliveira (2000: 53): os Amoipira, Tabajara, Ubirajara, Potiguara e Guarani. Nunes (1975: 29) deduz que os Amoipira descendem dos Tupinambá. Já Hemming (1997: 116) acredita que o processo de povoamento colonial é responsável pela migração dos Tupi para o Maranhão e para as terras situadas às margens do rio Parnaíba.
A possibilidade dos índios Kamakan, pertencentes à família Jê, terem chegado até São Raimundo Nonato é indicada por Pessis (1994:237):
Praticavam o enterramento secundário em urnas de cerâmica. O morto era inicialmente enterrado em posição fetal em uma fossa de 1, 20 a 1, 50 m de profundidade, tendo ao seu lado armas e uma jarra contendo uma bebida; tudo era em seguida coberto de terra, fazia-se uma fogueira sobre a sepultura e recobria-se com ramagens (informação interessante, pois as escavações em abrigos da área do Parna permitiram a descoberta de enterramentos com o corpo coberto de ramos, tendo sido ateado um grande fogo sobre a sepultura depois desta ter sido recoberta de sedimentos). Um pote de cerâmica na fossa indicava a idade e o sexo do morto. Depois que a carne desaparecia, os ossos eram coletados e introduzidos em uma urna funerária, a qual era enterrada em um buraco não muito fundo.
A diversidade de grupos indígenas registrados nos estudos etno-históricos levanta a possibilidade de grupos culturais diferentes daqueles que ocuparam os sítios do tipo aldeia, apresentados nesta pesquisa, terem se deslocado para a região do Parque Nacional. Os condicionantes históricos do processo de colonização do interior, por meio da expansão do gado para o Sertão e das guerras justas, explicam por que um grupo externo se deslocaria para a região do Parque Nacional. Essa hipótese é reforçada por Pessis:
Durante milênios, desde há 500 séculos, a ocupação humana indígena foi contínua na região do Parque Nacional. Evidências arqueológicas indicam que, em épocas históricas, como resultado dos processos de
colonização, a região teria se transformado em ponto de refúgio para populações indígenas, que fugiam do invasor europeu que ocupara o litoral e as margens do Amazonas. Provenientes dessas regiões, pressionados pela presença dos criadores de gado que avançam na região, pelo norte e pelo leste, diferentes etnias recuaram, convergindo para as serras do Parque Nacional. Ali, como última etapa de quatro séculos de perseguição, coabitaram grupos indígenas de diversas origens (2003:40).
Apesar de não ser possível determinar a etnia e o tronco lingüístico do grupo cultural responsável pela produção dos vestígios arqueológicos da Toca da Baixa dos Caboclos, pode-se contudo afirmar, com base nas informações oriundas das pesquisas etno-históricas e das datações, que este grupo pertence a um contexto histórico de migrações e dispersões populacionais catalisadas por pressões demográficas tanto de outros grupos autóctones, quanto dos colonizadores do Sertão.
A perspectiva adotada neste estudo, o perfil técnico cerâmico, permitiu distinguir duas tecnologias diferentes nos vestígios cerâmicos dos abrigos Toca da Baixa dos Caboclos e Toca do Serrote do Tenente Luiz. Além destes dois abrigos, também foram estudados os vestígios cerâmicos da Toca do Pitombi. Todavia, o número de fragmentos foi insuficiente para traçar o perfil técnico cerâmico, os dados obtidos nas análises desses vestígios indicam diferenças tecnológicas em relação aos outros dois abrigos.
A Toca da Baixa dos Caboclos possui um perfil técnico cerâmico diferenciado daqueles identificados nos sítios a céu aberto Aldeia Queimada Nova, Barrerinho, Baixão da Serra Nova (OLIVEIRA, 2001) e Cana Brava (CASTRO, 1999), ou seja, o grupo cultural responsável pela produção dos artefatos cerâmicos deste sítio de abrigo não representa uma continuidade daqueles grupos culturais que ocuparam as aldeias. E, com base nas informações oriundas das pesquisas etno-históricas e das datações para este sítio, pode se afirmar que este grupo pertence a um contexto histórico de migrações e dispersões populacionais catalisadas por pressões demográficas tanto de outros grupos autóctones, quanto de colonizadores do Sertão.
Os sepultamentos na Toca da Baixa dos Caboclos ocorreram num período em que os processos de expansão de colonos, em sua maioria relacionados à agropecuária extensiva, já alcançavam as terras da então chamada Capitania do Piauí. Em decorrência da conquista do Sertão, vários povos autóctones tiveram seus destinos alterados, sendo obrigados a migrar de região para região, quando não foram
simplesmente exterminados em uma das inúmeras “guerras justas”. O grupo humano responsável por estes sepultamentos pode fazer parte de uma das populações vítimas daquele momento histórico. Todavia, é prematuro afirmar com certeza a veracidade deste fato. Para comprovar tal afirmativa seria necessário a ocorrência de uma dessas situações: descoberta de um outro sítio arqueológico, em área diferente do Parque Nacional, com artefatos cerâmicos suficientes para atestar a semelhança da tecnologia adotada. A segunda situação seria a localização de outro sítio com o mesmo perfil técnico cerâmico na área do Parque Nacional, com datações que recuassem à presença deste grupo cultural no período pré-contato.
Como as evidências arqueológicas independem da vontade humana, essa questão talvez permanecerá aberta. O que se pode precisar é que o grupo responsável pela produção daqueles artefatos encontrados na Toca da Baixa dos Caboclos não apresenta semelhanças com as aldeias já estudadas, e, no entanto, por se tratar de um grupo contemporâneo a um processo de tamanha magnitude, a colonização do interior do Piauí, seria perfeitamente plausível seu envolvimento neste contexto.
Para a Toca do Serrote do Tenente Luiz é preciso ainda determinar com exatidão se os enterramentos em urnas e aqueles feitos diretamente no solo foram executados por grupos alheios entre si, ou se as mesmas pessoas conheciam e adotavam práticas funerárias diferenciadas.
Esta dúvida fica evidente ao se analisar as três datações existentes para este sítio. Duas destas, mais antigas (935 ±40 BP e 920 ±35 BP), foram obtidas a partir dos dentes de um mesmo esqueleto, sepultado, a princípio, sem urna funerária. Conseqüentemente, estas datações podem representar os enterramentos de um outro grupo cultural, pois a terceira datação, mais recente (365 ±40 BP), está associada diretamente aos enterramentos em urnas. A resposta para dúvidas como esta poderá vir através do pronunciamento dos arqueólogos responsáveis pela escavação do sítio, em artigo ou monografia a ser publicada sobre o assunto.
Outro elemento a ser considerado na Toca do Serrote do Tenente Luiz é que, de um total de 1575 fragmentos, apenas 171 possuem tamanho superior: 2 x 2 cm, e espessura maior que 5,0 mm. Em outras palavras, a maior parte dos fragmentos (1404) passou por um processo de desgaste elevado e, talvez, intencional. Este achado pode ser o sintoma de uma prática proposital de destruição da cerâmica, quiçá a fragmentação da cerâmica fosse um tipo de acompanhamento funerário, ou mesmo
servisse para algum tipo de ritual ligado aos sepultamentos. Esse índice elevado de fragmentação da cerâmica é um dado concreto e sua interpretação, pelo menos até o momento, somente pode ser feita num plano de conjecturas. O estudo de outros vestígios deste sítio, como o dos materiais líticos e dos vestígios orgânicos, poderá trazer nova luz sobre as práticas funerárias desse grupo cultural.
A produção cerâmica, no caso desta pesquisa, é um dos indicadores de diferenciação entre sítios arqueológicos; contudo, trata-se de resultados parciais. A constatação de um perfil técnico cerâmico distinto, como parte de um conjunto de outros perfis já estabelecidos, é um elemento concreto e indicador de diferenciação. O estudo dos grupos ceramistas da área arqueológica do Parque Nacional da Serra da Capivara representa um grande passo no conhecimento dos grupos próximos ao contato. Neste sentido, considerando sua abrangência, esta pesquisa representa uma contribuição a mais no aprofundamento dos conhecimentos sobre o tema.
É importante destacar que a pesquisa histórica deve se beneficiar de outras áreas do saber, neste caso da arqueologia, e que as fronteiras da multidisciplinaridade tendem a suprir as ausências e hiatos em ambas as disciplinas.
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Relações Ecológico-Humanas no Vale de GURGUEIA

Relações Ecológico-Humanas dos Habitantes de Várzea Grande e o
Parque Nacional da Serra da Capivara
A presente seção representa a síntese e o aprofundamento das discussões travadas
nos itens anteriores. Até aqui, tomou-se como contexto a ampla visão da área de estudo,
composta pelo município de São Raimundo Nonato e pelo Parque Nacional da Serra da
Capivara, procurando-se entender os processos de relações Homem/Meio Ambiente, de forma
holística, de acordo com os princípios norteadores da ecologia humana. Foi composto um
quadro contextual, onde os principais problemas sócio-econômicos e ambientais foram
abordados.
Neste item, todavia, restringe-se o foco do estudo na área do povoado de Várzea
Grande e sua interface com o PARNA da Serra da Capivara. Primeiramente, será traçado um
perfil sócio-econômico e ambiental do homem de Várzea Grande, considerando-se os principais
indicadores de qualidade de vida. Em seguida, será estudada a atividade das caieiras e suas
implicações ambientais, e por último, enfocar-se-á a problemática da criação do PARNA e seu
impacto sobre a comunidade local. Ao se estudar uma comunidade pequena, perde-se na
escala, todavia, “quanto menor o microcosmo social, maior é a universalidade dos seus
processos”, como pensa o dramaturgo espanhol Arrabal ( conforme comunicação pessoal ).
3.1. Perfil Ecológico-Humano da Várzea Grande
Os registros arqueológicos e a abundância das pinturas rupestres mostram que a
região da Várzea Grande foi habitada por diversas gerações de povos indígenas com grandes
talentos artísticos, expressos nas pinturas que retrataram cenas do cotidiano e da natureza,
especialmente a fauna, conforme discutimos no item III. 3.1. O povoamento ocidental europeu
de Várzea Grande, começou a se instalar na região no começo do século XIX e desenvolveuse
lentamente até atingir as características atuais. O perfil do Homem de Várzea Grande,
discutido abaixo, tenta desenhar o modo e a qualidade de vida da comunidade. De forma
sintética, selecionoaram-se as atividades, características e indicadores mais representativos da
comunidade.
A densidade demográfica de São Raimundo Nonato é baixa, 7,35 habitantes por
km2, sendo que a maior concentração demográfica está a sudoeste e na sede do município,
Certamente, a densidade habitacional de Várzea Grande é bem menor. Dos vinte e um
Série Meio Ambiente Debate, 13 57
domicílios 17, obteve-se um total de 126 habitantes, gerando uma média de 6 habitantes por
moradia, que é um índice compatível com o Nordeste, porém alto se comparado com a Região
Sul, Sudeste e Centro-Oeste. A pirâmide etária apresenta distorções típicas de pequenas
populações instáveis; o baixo percentual dos menores de 4 anos pode ser explicado pela
mortalidade infantil, porém Araújo et al. ( 1991 ) ao interpretar a pirâmide etária de duas
comunidades próximas à Várzea Grande, atribuiu este fato a queda da natalidade provocada
por laqueaduras.
O estreitamento das faixas intermediárias produtivas é explicado pela migração
em busca de trabalho e estudo. Na faixa dos vinte aos trinta anos o percentual de mulher é
bem mais elevado; na faixa acima de 65 anos, há um percentual alto, devido ao apego a
região e a insensibilidade à migração. A importância da questão demográfica exige estudos
mais aprofundados, que fogem ao escopo deste trabalho.
O nível de instrução do povo de Várzea Grande é baixo, o índice de analfabetismo
chega a 60%, sendo menor nas faixas etárias mais jovens. Existem três escolas primárias, que
também atendem aos alunos dos sítios e fazendas. O índice de reprovação é alto, 35%. Além
disto, os alunos são afastados das escolas para trabalharem na época de plantio e colheita. A
formação das professoras é precária, geralmente, são adultas sem qualquer formação, apenas
alfabetizadas, que recebem rendimentos abaixo do salário mínimo. Há escola de segundo
grau somente em São Raimundo Nonato. Este quadro é semelhante em todos os povoados
da região do PARNA, com raras exceções ( IPARJ/FUNDHAM, 1987 ). O baixo padrão
instrucional do povo é um fator determinante nos seus modo e qualidade de vida, afetados
por problemas de todos os níveis, desde saúde/saneamento até manipulação política.
A água é o elemento natural mais importante na vida do sertanejo. Dos 25 domicílios
pesquisados, 22 usam água do açude, 19 tem cacimba de minação ( poço d’água ), 17 usam
o chafariz, cuja água vem da Serra da Capivara. A água é guardada em caldeirões, tambores
e potes. A situação de abastecimento fica precária no período seco do ano, quando o açude se
reduz a uma poça, onde chafurdam animais, porém, infelizmente, a água continua a ser usada,
o que contribui para o alto índice de verminose. Na seca, os povoados de São Raimundo
Nonato são socorridos por caminhões pipa, todavia, a distribuição de água é feita de forma
clientelista, pelo prefeito e vereadores que favorecem os seus “currais” eleitorais. Segundo
Amorim ( 1993 ), neste período é que coronéis e políticos mais lucram, pois, contratam
caminhões-pipa fantasma, ficando com os recursos, e a água não chega à população; é a
“indústria da seca”. Conforme tratamos no Cap. II item 1.3., o abastecimento depende muito
dos açudes, todavia, os poços artesianos fornecem água de boa qualidade. De acordo com o
professor Aldo Cunha Rebouças ( in Amorim, 1993 ), a estratégia da construção de grandes
açudes é equivocada, pois o Semi-Árido tem reservas de águas subterrâneas com potencial de
até 9 bilhões de metros cúbicos por ano, os poços profundos dispensam investimento com
captação, adução, tratamento, e certamente combateriam a “indústria das secas”. As águas
salobras produzidas pelos poços podem ser dessalinizadas por técnicas que utilizam fontes de
energia solar. As águas servidas são desperdiçadas, quando poderiam ser tratadas e reutilizadas
para outros fins que não sejam o consumo humano.
Em São Raimundo Nonato, como na maioria dos municípios brasileiros, não há
coleta do esgoto, tampouco em Várzea Grande, onde a amostragem revelou que a metade
dos domicílios não tem fossas sanitárias, e todos amontoam o lixo no fundo do quintal, sem
nenhum tratamento.
A simples observação dos moradores de Várzea Grande, revela pessoas de aparência
magra e crianças com raquitismo. Ao serem indagadas sobre as principais doenças que afetam
a família, a amostragem indicou três níveis de freqüência de respostas, que são:
17 Foram amostrados 25 domicílios, porém quatro questionários tiveram o quesito “estrutura familiar” prejudicado.
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a) Alta freqüência - diarréia, gripe, coração e coluna;
b) Média freqüência - dor de cabeça, chagas, derrame, hepatite;
c) Baixa freqüência - câncer, convulsão, paralisia infantil, sarampo.
Os moradores dos domicílios amostrados mostraram ter um largo conhecimento
da flora nativa e a sua utilização com fins terapêuticos. Para quase todas as dores e doenças
existem diversas plantas que são usadas com fins medicinais. Entretanto, usam também remédios
alopáticos, atendem as campanhas de vacinação, e pulverizações sanitárias são feitas pela
SUCAM ( Superintendência de Campanha Contra a Malária ).
A FIOCRUZ ( Fundação Osvaldo Cruz ) tem trabalhado na área de estudo e verificou
que as crianças menores de cinco anos sofrem de uma “alta prevalência de desnutrição protéicocal
órica” (60%). As crianças apresentam mucosas hipocoradas, pele e cabelos ressecados e
edemas, sintomas do parasitismo por Ancilostomídeos, Entamoeba, Tênia e outros. A doença
de Chagas é freqüente na área e a SUCAM diz estar combatendo. Com este quadro, fecha-se
o “Clássico ciclo de pobreza-desnutrição-verminose-diarréia” ( ARAÚJO et al., 1991; IPARJ/
FUNDHAM, 1987 ). É necessário combater este quadro, incentivando o uso dos conhecimentos
da medicina natural popular, bem como o tratamento nos postos de saúde.
As moradias dos habitantes de Várzea Grande são de alvenaria com paredes
rebocadas e telhas coloniais. Tijolos, telhas e madeiras são produzidos nas redondezas. As
casas da rua principal (BR-020) são maiores e os cômodos frontais são usados para algum
tipo de comércio. De acordo com a amostragem, metade dos domicílios tem privadas com
fossa; um quarto possui quintais com canteiros para verduras, plantas frutíferas e medicinais
para o uso cotidiano. Dentre 25 casas amostradas, 20 são próprias, 5 cedidas, nenhuma alugada.
As casas dos sítios são de taipa, sem reboco, o que facilita a proliferação do vetor da doença
de Chagas o barbeiro ( Triatomídeo ). Segundo IPARJ/FUNDHAM ( 1987 ), muitas famílias
possuem também uma “casa de roça” que tem um cômodo, construída com madeira nativa,
e usada nos dias de trabalho nas épocas de plantio, capina e colheita.
Lima ( 1984 ) enfatiza que na ecologia humana, para a compreensão do processo
interativo homem-natureza é essencial o entendimento das relações de trabalho e o modo de
produção da comunidade em estudo. A amostragem realizada na Várzea Grande revelou que
a totalidade dos cabeças de família, exercem, ao menos uma vez por ano, a atividade de
agricultor. Outras profissões são referidas como associadas à atividade de agricultura, tendo a
maior freqüência ( 28% ): profissões ligadas ao corte, transporte e consumo de lenha ( caieireira,
lenhador, motorista, pedreiro e oleiro ). Existem muitos pontos de comércio e bodegas, mas a
extração de lenha para as caieiras já mobiliza 28% da mão-de-obra, especialmente no período
seco do ano. O rendimento familiar médio mensal ( domicílio com 6 pessoas, foi estimado em
Cr$ 30.000,00, equivalentes a US$ 59 (em 1991), quando o salário mínimo era de Cr$
42.000,00 (US$ 82). Quando os anos secos se sucedem, aumenta o desemprego e cresce a
emigração, dirigida principalmente para São Paulo, Brasília, Goiás, Pará e São Raimundo
Nonato. São então criadas as “frentes de emergência”, onde os trabalhadores são contratados
para tarefas, como construção de barragens, caldeirões, estradas, capina, em troca de pequenos
soldos. Quando começa a chover, muitos migrantes retornam.
A investigação da produção agrícola, baseada na amostragem, revelou que produzse
basicamente milho, feijão, mandioca e caju. Dentre 25 entrevistados, 19 plantam milho, à
média de 1,8 ha por propriedade por ano, que produz uma média de 8,7 sacos por hectare
por ano; segundo o Censo Agropecuário ( 1985 ) a produção média de São Raimundo Nonato
foi de 7 sacos/ha.18 Dezesseis propriedades plantam feijão, à média de 1,4 ha/propriedade/
ano, que produzem 3 sacos/ha/a, enquanto a produção média de São Raimundo Nonato foi
18 Cada saco pesa 60 Kg.
Série Meio Ambiente Debate, 13 59
de 4 sacos/ha/a. Somente três propriedades informaram o plantio de mandioca, e uma, o
plantio de caju. Os agricultores revelaram que comercializam 30% da produção do milho e
20% do feijão. Boa parte do milho é usada para alimentar os animais, e o feijão é para
consumo humano. As técnicas de plantio são rudimentares, usando-se o arado puxado por
animais e enxada; e somente um entrevistado possui trator; 60% usam sementes próprias,
30% usam sementes compradas, em secas prolongadas a tendência é consumir as sementes
reservadas para o plantio; 40% usam adubo ou agrotóxico. Doze dos entrevistados receberam
apoio do Projeto Sertanejo. Todos mantêm um bosque de reserva para extração de madeira,
umbu e mel. As madeiras mais usadas para a construção das moradias são, birro (Diptychandra
epunctata), angico ( Andira vermifugo ), aroeira ( Astronium urundeuva ), vara branca ( elicteres
spp .), pau d’arco ( Tabebuia spp. ); as espécies mais usadas para fazer cercas são, birro
(Croton spp ), marmeleiro ( Alibertia sp. ), cangaeiro ( Pterodum abruptus ), que duram em
torno de dez anos; as espécies preferidas para o consumo doméstico são, marmeleiro ( Alibertia
sp. ), cangaeiro ( Pterodon abruptus ), pau-de-rato ( Caesalpinia bracteosa ), jurema ( Mimosa
spp., Acácia spp. ).
Não foi possível avaliar quantitativamente o rebanho total de Várzea Grande, todavia
há uma composição qualitativa semelhante a São Raimundo Nonato, onde o maior rebanho
é de caprinos, seguido de suínos e bovinos ( Tabela 7 ). É grande a proliferação de muares,
que são empregados para o transporte, especialmente de água. A pecuária é extensiva. Dos
25 entrevistados, 9 informaram que o gado é criado livre, e quatro que o gado é criado
estabulado. Quatorze criadores responderam que criam gado para consumo e 9 responderam
que criam para consumo e venda. Emperaire ( 1987 ) avaliou que a Várzea Grande foi um
dos centros pecuários mais importantes de São Raimundo Nonato, exportador para outros
estados durante o ciclo da cana-de-açúcar. Hoje a criação é voltada para o consumo familiar
de leite e carne; poucos fazendeiros possuem grandes rebanhos. O rebanho é atacado por
verminoses, aftosa e bicheira, e durante secas prolongadas quase todo gado sucumbe.
Silva et al. ( 1986 ), concluiu que existe um elevado grau de concentração de terra
no Piauí, que tem uma relação causal com a concentração de renda. Em São Raimundo
Nonato, ocorreu um processo de concentração crescente de terras, a partir de 1950. Em 1982,
apenas 5% da superfície eram ocupadas por 54% dos estabelecimentos, com o tamanho da
ordem de 10 a 50ha; dos informantes, 95% se declararam proprietários. Os principais fatores
limitantes da produção agropecuária são:
a) irregularidade pluviométrica;
b) injusta concentração de terra;
c) falta de assistência técnica;
d) falta de armazéns;
e) inexistência de cooperativas;
f) o mais grave fator é a dificuldade ao acesso do crédito bancário para financiar a
produção (IPARJ/FUNDHAM, 1987 ).
O comércio em Várzea Grande tem um caráter local, com a presença de empórios,
bares e bodegas, que se concentram na rua principal. Os empórios maiores pertencem a
grandes proprietários de terras e de caminhões que transportam madeira e cal, que mantêm
relações comerciais com os caieireiros.
O Parque Nacional da Serra da Capivara e o seu entorno, inclusive a Várzea Grande,
contêm um dos mais importantes patrimônios cultural e arqueológico do país. A cultura pretérita
de Várzea Grande foi muito rica, porém, sua cultura recente tem sido influenciada por fatores
exteriores. Entre os cidadãos varzeanos, os laços familiares são fortes e a base da sociedade é
a família nuclear (marido, mulher e filhos), que também é a unidade de produção e consumo.
Tanto em São Raimundo Nonato como em Várzea Grande, existem grandes famílias
tradicionais, ocorrendo muito casamento interparental. Geralmente, no meio rural, os filhos
60 Série Meio Ambiente Debate, 13
ao se casarem, constroem uma nova moradia na propriedade do pai ou sogro, ou abrem
novas roças em posse onde é muito comum a troca de dias de trabalho entre parentes e
compadres. Existe um código de honra, baseado na união familiar e na valentia, em que o
assassinato de um membro da família é cobrado com a morte de qualquer pessoa, em qualquer
tempo, da outra família ( IPARJ/FUNDHAM, 1987 ).
A religião católica é majoritária entre os cidadãos de São Raimundo Nonato e
Várzea Grande, porém o protestantismo tem crescido paulatinamente. Os santos padroeiros
são reverenciados em grandes festas regionais, São Raimundo Nonato em 31 de agosto e São
Pedro, que é o padroeiro da Várzea Grande, comemorado em 29 de junho. Existe, também,
uma grande devoção por São Gonçalo, cujas Rodas de São Gonçalo ocorrem o ano inteiro,
com a participação de grupos musicais e de dança, onde são usados ornamentos de cipó com
flores silvestres. O Reizado ainda é cultuado, com grupos de músicos e cantores que se deslocam
de casa em casa.
Resumindo o exposto acima, pode-se afirmar que as condições sociais gerais da
comunidade são precárias. A renda familiar média, US$ 58, está abaixo da linha da miséria,
que segundo o Banco Mundial é US$ 60. A densidade populacional é baixa, mas a prole é
numerosa. O nível de analfabetismo é alto. A água é escassa e as condições de saneamento
ruins. A desnutrição é evidente e há alto índice de parasitismo. As habitações são razoáveis,
embora ainda haja taipa. A atividade mais importante e impactante é a agropecuária; a extração
de madeira e as caieiras empregam boa parte da mão-de-obra, mas são altamente
desagregadoras do meio ambiente. Apesar dos percalços da vida difícil, o cidadão varzeano
mantém os seus cultos religiosos e tradições culturais vivos.
A SUDENE tem desenvolvido um sistema de informações, que foi implantado em
1979, o Sistema Regional de Indicadores Sociais do Nordeste ( SIRI ), que dispõe de uma
listagem de 132 indicadores, divididos em 11 grupos. SUDENE ( 1987:204 ), ao analisar os
resultados da política regional e a pobreza social, entende que o crescimento econômico não
se refletiu, direta e extensivamente, na melhoria dos padrões sociais, pois, “empobreceu a
vida na feroz ilusão de enriquecê-la”. Assim, o Nordeste detém as mais altas taxas de mortalidade
infantil do Brasil; o menor índice de esperança de vida ao nascer ( em torno de 50 anos );
metade dos analfabetos do País ( cerca de 11 milhões de pessoas ); baixíssimos índices de
rendimento” ( 36% estão classificados na faixa de subutilização da força de trabalho ); 89% da
renda está concentrada na metade mais rica, e 11% na metade mais pobre que é submetida a
condições subumanas ( op. cit. ).
O IPEA (1993) no “MAPA da FOME II: Informações Sobre a Indigência por
Municípios da Federação”, baseado em metodologia da CEPAL e segundo os requerimentos
nutricionais recomendados pela FAO/OMS/ONU, concluiu que no Município de São Raimundo
Nonato existem 9.225 famílias em estado de indigência. Apesar deste quadro, o importante é
que o povo continua trabalhando e lutando contra a injustiça social, e cabe ao governo, à
universidade, aos intelectuais e a todos o segmentos da sociedade buscarem alternativas em
todos os campos para viabilizar o desenvolvimento sustentado no Nordeste.
3.2. As Caieiras
A atividade caieireira se constitui numa das principais ocupações e problemas do
povo de Várzea Grande, por isso mereceu um estudo detalhado. As caieiras estão localizadas,
aproximadamente, 10 km a sudeste do povoamento, nas proximidades do PARNA. A atividade
caieireira iniciou-se em 1958, no entorno dos maciços calcários, localizados nos sopés do
front de cuesta, na região de Várzea Grande. Os maciços mais importantes são: o Boqueirão
da Pedra Furada, Morro do Garrincho ( onde já se produziu cimento ) e os Serrotes do Antônião
e do Artur, onde estão as caieiras. Os serrotes calcários, são componentes do grupo Salgueiro,
têm formas arredondadas ou ovais, constituídos de calcário intraformacional de fácies muito
Série Meio Ambiente Debate, 13 61
finas e marmorizado, finamente estratificado, de cor cinza.
A caieira constitui-se de um forno aberto, de queima direta. O forno tem o formato
cônico, com 4,8m de altura; 5,2m de diâmetro na base; 4,2m de diâmetro no topo e paredes
de 0,7m. Suas medidas internas são: 4m de diâmetro na base; 3,20m de altura e 0,8m de
profundidade ( abaixo da superfície ). A caieira tem três janelas de 0,6m de diâmetro, na
altura do solo, onde é introduzida a lenha e retirada a cinza.

ASPECTOS HUMANOS MACROJÊ

. ASPECTOS HUMANOS
3.1. As Ocupações Humanas Pré-históricas
A região de São Raimundo Nonato e do Parque Nacional da Serra da Capivara é
profícua em sítios arqueológicos. Já foram catalogados mais de trezentos e sessenta sítios que
contêm inscrições rupestres, material lítico e cerâmicas. A arqueóloga Niede Guidon, juntamente
com os pesquisadores do Museu do Homem Americano, trabalha na área desde 1973, tendo
realizado importantes descobertas para a compreensão da trajetória do homem ancestral
americano. Para GUIDON ( 1990 ), estas descobertas colocam em cheque a hipótese da
colonização da América, através do estreito de Behring, que limita a presença humana há
apenas 12.000 anos A.P. ( antes do presente ). A arte figurativa, que retrata os relatos das
crenças, hábitos, figuras animais, e geométricas, surgiu somente há 12 milênios ( GUIDON,
1990; GUIDON & DELÍBRIAS, 1986 ).
Os caçadores e coletores do Pleistoceno deixaram seus registros na Toca do
Boqueirão da Pedra Furada, que foram datados por PARENTI et al. ( 1990 ), com 14C, em até
47 mil anos A.P. Os homens do pleistoceno dependiam dos recursos naturais da região, como
a água, as plantas e os animais, cujos vestígios são encontrados próximos às fogueiras pré-
históricas. Para SCHMITZ ( 1990 ), o Nordeste funcionou como um centro irradiador de
populações e culturas para outras áreas.
No transcurso do Holoceno ( 12.000 a 3.000 anos A.P. ), influenciaram fatores
ambientais que propiciaram a expansão das populações dos caçadores-coletores da região
Nordeste e Centro-Oeste do Brasil. O período que vai de 12.000 a 6.000 anos A.P., caracterizouse
pela intensificação da produção de material lítico de boa qualidade e da arte rupestre na
região de São Raimundo Nonato. O seu apogeu foi atingido há aproximadamente 6.000 anos
A.P. A bela arte produzida por estes povos, denomina-se tradição Nordeste. A partir daí, parece
ter ocorrido uma aridificação do clima, migrações e decadência da arte rupestre, com a
dominância da tradição Agreste que desaparece aproximadamente há 3.000 anos A.P.
36 Série Meio Ambiente Debate, 13
(SCHMITZ 1990; GUIDON, 1990; IBAMA, 1991 ).
Aproximadamente há 3.000 anos A.P., surgiram no sudeste do Piauí, populações
que praticavam a agricultura, fabricavam cerâmicas e teciam. Apesar da abundância dos restos
de cerâmicas e vestígios sobre este período, existem raros estudos como o de MARANCA
(1976 ). As aldeias eram circulares e densamente povoadas. Plantavam feijão, milho, amendoim
e cabaça. Produziam artefatos de pedra mais sofisticados como machados polidos e diversos
utensílios de cerâmica de boa qualidade. Havia rituais para os mortos que eram envolvidos
em um tecido de caroá e depositados em urnas de cerâmicas ( MONZON, 1980 ).
3.2. As Tribos Indígenas
A história étnica dos índios do Piauí é semelhante a história das populações indígenas
do Brasil e da América: a partir do descobrimento, foram dizimados pelos colonizadores
europeus.
Existem poucos estudos sobre os povos indígenas do Piauí, porém, o antropólogo
Luiz MOTT ( 1985 ) realizou uma investigação histórica, baseada em provas documentais.6
Ao analisar a literatura, observa-se que o grupo da língua Jê é composto por diversas tribos
como os Pimenteiras, Acroás, Macoazes, Cherens, Gueguêz, Kamakam e Jeicó. O grupo de
língua Cariri ainda sobrevive no nordeste e teve tribos de Cariri e Tremembé. Cabe ressaltar
que os índios Pimenteiras aparecem freqüentemente nos relatos, desde o século XVII, e
ocupavam grande extensão, porém, segundo Mott, foram dizimados entre 1776 e 1784.
No começo da colonização do Piauí e da região de São Raimundo Nonato existiam
os índios das seguintes tribos indígenas: os Pimenteiras, que dominavam toda a região do alto
Piauí e alto Gurguéia; os Acroás, Gueguêz e os Kamakan, que habitavam provavelmente até
São Raimundo Nonato; Os Cariri, que habitam, ainda hoje, a Bahia e Pernambuco e os
Tremembé que habitavam do rio Gurupi até o rio Apodi. Os estudos etnográficos, pouco
precisos, poderão ser elucidados com as investigações no campo da arqueologia ( MISSÃO
FRANCO-BRASILEIRA, 1978 ).
3.3. A Colonização Européia
Um dos primeiros bandeirantes a desbravar o Piauí, foi Domingos Jorge Velho em
1662. Domingos Afonso Sertão, o “mafrense”, chegou ao Piauí em 1794, tendo partido do
vale do São Francisco, onde possuía fazendas, com o fito de expandir seus domínios. Esta
ocupação, é claro, só foi possível com a eliminação das tribos indígenas. O comandante José
Dias foi ordenado para conquistar a região de São Raimundo Nonato, o que resultou na
dizimação das tribos ( MOTT, 1985 ).
A conquista do Piauí se deu em conseqüência da expansão da economia açucareira.
As terras do Piauí não eram próprias ao plantio, porém possibilitaram o desenvolvimento
pastoril, transformando-se na principal área pastoril do Nordeste, sendo considerada por séculos
como o “curral e açougue” das áreas canavieiras. Em 1697, o Piauí já tinha 129 fazendas de
gado; em 1730, 400 fazendas; em 1772, 578 fazendas e em 1818, 795 fazendas. A pecuária
tornou-se o mais importante fator econômico do Piauí, porém, a partir de 1760, passou a
sofrer a concorrência de Minas Gerais. As terras para o uso agrícola começaram a ser utilizadas
nos espaços desocupados entre as fazendas. A agricultura praticada era exclusivamente para
fins de subsistência ( MOTT, 1985 ).
A evolução político-administrativa do município de São Raimundo Nonato, tem
como ponto de partida a doação da fazenda Conceição, propriedade do “Mafrense”, aos
jesuítas, que construíram uma casa e deram o nome de Sobrado da Conceição. O lugar
6 Luiz R. B. MOTT. 1985. Piauí Colonial; população, economia e sociedade. Governo do Estado do Piauí, Teresina, 144p. Nos referimos ao
artigo que tem por título: Etno-história dos índios do Piauí Colonial..
Série Meio Ambiente Debate, 13 37
denominado Confusões, foi elevado à condiçãode Distrito Eclesiástico de São Raimundo
Nonato por Decreto Imperial em 1832. O município foi criado em 1850, a comarca em 1859,
e adquiriu o Foro de Cidade em 1912. Por ser um municípiomuito extenso, São Raimundo
Nonato sofreu vários desmembramentos ( IBGE, 1984 ).

Freguesias de Gurguéia

O PERFIL DO INDÍGENA NO PROCESSO DE OCUPAÇÃO 
Faz-se necessário refletir sobre os fatos que aconteceram nesse processo de expansão.
Inegavelmente foi um movimento em que a violência predominou. Uma vez que os campos ocupados pelos fazendeiros era o mesmo onde viviam os índios, é natural que estes, que viviam da caça não tivessem o conhecimento de posse. Para eles, o gado era um animal como qualquer outro que abatiam para a sua alimentação, enquanto o fazendeiro o tinha como sua propriedade. Resistindo sempre, os índios no entanto recuavam já que eram combatidos com arma de fogo.
Há inúmeros fatos citados por CABRAL (1992) dos quais foram selecionados alguns para ilustrar e dar consciência à civilização maranhense de hoje, que não foram só os africanos que sofreram. Comparado ao tratamento dado aos índios, donos idôneos desta terra maranhense eles foram, os negros; princinpescamente tratados principalmente porque representavam, na época, investimento de capital ou compromisso imperdoável de dívida, quando comprados fiado, o que era mais freqüente do que se possa imaginar.
Eis alguns fatos:
Século XVIII
Durante o século XVIII, quando a frente ocupou e se expandiu pelos altos vales dos rios Parnaíba, Itapecuru, Alpercatas, Balsas, Neves (seu afluente), os conflitos foram intensos.
Os amanajós, cuja tribo etnicamente era mais clara que os timbiras, foram os mais acessíveis quando da ocupação pastoril no Vale do Parnaíba. Fraternalmente, deram o auxílio do seu trabalho pessoal e gratuitamente forneceram mandioca para os ocupantes fazerem farinha, milho, inhame, batatas, macaxeiras, bananas e mais produções de suas roças. Resultado desse encontro, os amanajós foram aldeados próximo ao povoado de São Félix de Balsas. Entretanto, o núcleo não prosperou, o que resultou na evasão, em 1763 de muitos índios para o Piauí. Baseada em informações adquiridas através de Francisco de Paula, Cabral informa que no início do Século XIX, o aldeamento estava em completa decadência e degeneração, resumido a um pouco mais de vinte pessoas.
 O PROCESSO DE OCUPAÇÃO 
CARVALHO (2000) sobre o assunto revela que: os amanajós receberam, em retribuição à sua generosidade, traições escravizações e... desapareceram da face da terra, sem nela deixarem mais que ossos – quando não carbonizados nos incêndios das ocas e a recordação de sua ingênua bondade. Certamente, em represália à maneira como eram tratados, e a perda gradativa da terra, os índios, na minoria das vezes manifestavam grande hostilidade aos vaqueiros e/ou seus patrões. Como exemplo, cita-se a tribo dos Acaroá; referida tribo lá pelos idos de 1760 vivia ao sul do rio Balsas, excursionando por toda a região e até no Piauí. Dessa realidade Cabral transcreve de d’Alecastre: Gueguê e Acaroá foram os que resistiram por mais tempo ao estabelecimento dos portugueses... naturalmente vingativos e turbulentos, mais se tornaram ainda depois de provocados, e a luta com os povoadores durou por muitos anos. Para subjugá-los (os Acaroá), foram realizadas várias bandeiras na segunda metade do Século XVIII. A primeira em 1750, resultou da solicitação dos fazendeiros dos altos Parnaíba e Itapecuru, para pôr fim, segundo eles, às correrias dessas tribos provocando destruição de muitas fazendas, evitando assim enormes prejuízos aos seus proprietários. Em 1758 foi assinado em Caxias um termo da junta (os atuais acordos), no sentido de desenvolver uma guerra defensiva contra os Acaroá e Timbiras. Referido termo justificava-se da necessidade de: defender as vilas e fazendas e a conservação das Freguesias de Gurguéia (Piauí) e de São Bento das Balsas ou Pastos Bons (Maranhão), ameaçadas com as correrias desses índios que já tinham destruído algumas de suas fazendas. Para efetivação do ataque, os fazendeiros de ambas as freguesias tiveram que fornecer quinhentas vacas, vinte e quatro cavalos e duzentos alqueires de farinha, o que é um testemunho da importância da agressão do citado empreendimento. O Estado participou com ferramentas, armas e munições. Como resultado, os Acaroá depois de reduzidos foram aldeados em São Félix de Balsas. Entretanto, há registros de que em 1768 havia na Freguesia de Pastos Bons duas aldeias de índios: dos Amanajós e a de São Félix de Balsas, embrião do atual município deste nome. Em 1771 mais duas campanhas foram empreendidas contra a tribo Acaroá. Pela citação a seguir pode-se avaliar o grau da violência que não poupou nem mesmo a população infantil.

O PROCESSO DE OCUPAÇÃO 
Duas façanhosas proezas, ou famigeradas ações se viram executadas nesta ocasião pelos grandes Teodosio e Felix do Rego: a primeira, muitas vezes repetidas consistiu na grande piedade que alcançaram as donzelas e meninas que se iam encontrando em um ou outro magote de fugidos, porque vendo estas matar a sangue frio a seus pais, irmãos e parentes que não resistiram nem levaram armas de qualidade alguma para o fazer, se humilhavam batendo as palmas das mãos, que entre eles é o modo mais expressivo de misericórdia, para comoverem ternura; mas nesta mesma ação de humildade digna de maior compaixão se lhes transpassam os peitos até darem o último suspiro, sem lhes valer a fraqueza do sexo e o tenro da idade, a falta de resistência e a carência de culpa e o pedirem humilde e incessantemente misericórdia. Ao se referir sobre os índios Acaroá no Maranhão, aldeados em São Félix de Balsas. SPIX & MARTINS (1976) escreveram: Encontramos apenas um resto desta colônia antigamente importante, segundo a nota do vigário, constava de umas 120 pessoas e mesmo estas nem todas de origem, sem misturas. Certas doenças especialmente as bexigas haviam dado cabo de muitos, outros já desde muito tinham regressado aos seus velhos retiros. O aspecto tristonho dos índios, que vagavam aqui em abstrata inércia, a sujidade e desordem das pobres chocas, assim com a falta de uma direção conveniente confiada agora a um soldado dado ao vício da embriaguez, reforçaram a nossa convicção de que deve considerar rara exceção uma feliz tentativa de colonizar indígenas
Esse quadro de declínio neutralizou totalmente e força e a honestidade dos Acaroá. Outras tribos contatadas no século XVIII pelos criadores de gado foram a dos Kapiekrã ou Canela e a dos Sakamekrã, resistentes e guerrilheiros aqueles, habitantes do vale do rio Alpercatas e estes habitantes da mata. Referidas tribos atacavam fazendas, povoados, assaltavam os viajantes que se dirigiam entre Pastos Bons e Caxias, dificultando assim a expansão da pecuária. CABRAL (apud RIBEIRO, 2002) enumera trinta e cinco fazendas de gado destruídas por essas tribos.
Já em outros tempos foram povoados seus campos em Pastos Bons, os melhores para criação de gado e ali com mais de sessenta estabelecimentos deste gênero formaram esta Ribeira, uma das mais populosas do distrito; porém, os índios Sakamekrã... e outros que com estes se confinam (Kapiekrã), tornaram a vertê-los em desertos solidões destruindo a maior parte dos ditos estabelecimentos e indo gradualmente tanto em aumento essa devastação que já hoje na dita Ribeira muitos poucos conhecem (existem) e esses mesmos quase exauridos.
Século XIX
Os conflitos, as contendas e todas as suas conseqüências, embora desastrosas, colaboraram para que houvesse, a partir do início do século XIX uma trégua e um certo ambiente de paz entre índios e criadores de gado. Dentre os fatores que contribuíram para essa “paz”, destaca-se
  
O PROCESSO DE OCUPAÇÃO 
a quebra da resistência dos índios pelas grandes perdas humanas socioculturais e econômicas sofridas. Não se pode excluir, no entanto; o fato de que já amadurecidos, criadores de gado e indígenas passaram a se entender, a se conhecer melhor, a usar e cobiçar as ferramentas usadas pelos brancos, além daqueles que serviram como instrumento de paz. Eram os interlocutores entre os dois grupos divergentes. Elementos que antigos prisioneiros de guerra de ambos os lados haviam escapado e serviram de intermediários por vivenciarem melhor o comportamento e as razões do “ter”, de ambos os grupos: criadores e índios. Um acontecimento que facilitou o entendimento dos pecuaristas com os Kapiekrã é que estes, precisando revidar uma derrota que tinham sofrido dos Sakamekrã, resolveram fazer aliança com os brancos para derrotar o seu inimigo, restabelecendo assim relações pacíficas com os criadores de gado. Disso resultou o aldeamento dos Kapiekrã na fazenda Buritizinho, enquanto o auxílio prometido pelo Estado nunca aconteceu, o que resultou no abandono dos índios que, famintos, passaram a roubar gado nas fazendas, ressurgindo assim atritos. Sob o pretexto de livrarem-se definitivamente dos Sakamekrã, atraíram os Kapiekrã para Caxias, onde havia uma epidemia de varíola e ali, deixaram-nos expostos à doença, prisões e espancamentos. Parte deles, ao tentar voltarem para seu lugar de origem, foram dizimados, outros, mesmo doentes escaparam resultando disso a proliferação da varíola em todo o alto sertão maranhense, patologia até então desconhecida naquela área. CABRAL (apud RIBEIRO, 2002) relata com detalhe esse episódio: Nada porém tão repreensível como a liberação de introduzir entre aqueles miseráveis o contágio das bexigas, da qual a vila de Caxias e suas circunvizinhanças estavam naquele tempo empestadas: se é, como dizem que fora de propósito para destruí-los, contando com a sua impropriedade para resistir a tamanho mal, o que não acho crível; porém, seja como for, o certo é que os gentios viram-se feridos dele, sem ter remédio algum que lhe valessem. Finalmente atormentados por toda forma, avivando-lhe cada vez mais a lembrança da traição com que os iludiram, chamando-os ali para atormentá-los e não podendo sofrer por mais tempo a fome que continuava a devorá-los, espalhavam-se desesperados fugindo para os montes donde haviam descido; porém estavam desse meio apartados e era assaz a desgraça que entre si levavam para que lá pudessem chegar muitos deles. Assim mesmo indefesos, consternados e fugitivos foram mandados espingardear pela retaguarda no lugar São José, a 14 léguas de Caxias, ficando por esses campos bastante mortos que, insepulcros, serviram de pastos às feras daqueles matos e aos urubus ou corvos do Brasil. Quanto aos Sakamekrã, a mesma autora registra que também enganados por expedições que sob a promessa de paz e fornecer-lhes ferramentas convenceram-lhes a abandonar a 31

O PROCESSO DE OCUPAÇÃO 
área onde habitavam protegidos pela mata e, num confronto a campo aberto os derrotaram abatendo-os e vendendo-os em leilão em Caxias. Os detalhes desse gesto covarde são minuciosamente relatados pela autora citada. Mas quão diferente não foi deste acolhimento protelado, aquele que receberam na crueldade com que a sangue frio, foram ali mesmo mortos, alguns atraiçoadamente, nas prisões com que imediatamente aguilhoram outros, e na infame partilha que se fez das suas famílias, em tom de escravos perpétuos, chegando a ser arrematados em leilão público na praça da vila de Caxias e levados aos descaroçadores de algodão daquele distrito, onde amarrados como macaco ao sepo, foram asperamente castigados para adiantar as tarefas ao serviço consignado pelos seus ilegítimos senhores, no entanto que talvez sofriam fomes intoleráveis. Outros confrontos foram registrados no sul e sudoeste do Estado, entre as tribos que habitavam a margem oriental dos rios Tocantins, Farinha (afluente daquele) e Grajaú. Como exemplo citam-se:
•Piocobgez – habitavam o vale de várzea do rio Grajaú e que opunham grande resistência aos criadores, chegando a destruir fazendas e até mesmo povoados, como Chapada em 1814;

•Krahó, aldeia com mais de três mil índios e que habitavam onde foi fundado São Pedro de Alcântara; eram acessíveis e de relacionamento pacífico. Sobre esse assunto registra CABRAL (1992:131)
Prezava-se de bom guerreiro e com justiça, pois assaz o experimentamos nas expedições em que ajudou contra as nações circunvizinhas. Não tinha ambição alguma e era humano, entregando-nos generosamente todos os prisioneiros que havia e muitas vezes aconteceu que quebrasse a cabeça a seus soldados porque se opunham a estes sentimentos. As tribos que escaparam da violência dos criadores de gado, sofreram o mesmo processo por parte dos bandeirantes, que os aprisionavam para serem leiloados como escravos no Pará. Citando Francisco de Paula, CABRAL (1992) registrou: Certa expedição que foi aos índios da tribo Augutgê, em 1816, soube reduzi-los com aquelas já referidas promessas; porém, logo que eles se entregaram, prendeu-os e escravizou-os; queixando-se então, humildemente, o seu maioral daquela infame traição que não merecia, a humana resposta que pôde obter foi uma ordem que se deu para levá-lo dentre os seus a um bosque vizinho, onde muito a sangue frio foi despedaçado pelos cruéis algozes que o conduziram: o resto dessa tribo que não coube nas canoas do Pará foi vendido a vários comissionários volantes que o foram revendilhar no Piauí.

 O PROCESSO DE OCUPAÇÃO 
Dessa forma, procedeu-se ao sacrifício do nativo na ocupação dos sertões maranhenses, participando no palco desse espaço, na conquista e no sofrimento, a exemplo do que acontecia com o negro no litoral, na baixada e nos vales úmidos. Tal como o negro, a resistência do índio a tal dominação, foi primordial para a sobrevivência, embora ainda bastante sacrificada de algumas, e o que é mais importante é que o espírito de luta dessas duas minorias étnicas nos dá uma lição da necessidade de conviver com as diferenças de cada cultura e os diferentes, que, no entanto, foram importantes na construção do Brasil e particularmente do Maranhão.

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO GURGUEIA

O ENSINO NO PIAUÍ: ENSAIOS DE SUA FORMALIZAÇÃO (SÉCULOS XVIII E XIX).

Antonio José Gomes (UFPI)

Claudia Cristina da S. Fontineles (UESPI)

Marcelo de Sousa Neto (UESPI)

 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO GURGUEIA

Memória e Educação

A produção acerca da História da Educação não tem sido uma das mais harmoniosas,
uma vez que educadores e historiadores debatem as competências de fazer História da
Educação. No entanto, não temos a intenção de nos atermos à discussão que, per se,
representa tema que demandaria estudos mais amplos. Buscamos neste trabalho colaborar
para uma melhor compreensão da História da Instrução Pública no Piauí, analisando estudos
desenvolvidos por educadores e historiadores locais, e assim, tentando esboçar um perfil da
educação no Piauí, em seus períodos colonial e imperial.
Com um processo de colonização sui generis, o Piauí tem o desenvolvimento de sua
educação formal diretamente relacionado à ocupação de seu território, sendo sua experiência
educacional marcada pelo signo da falta de recursos financeiros e carência de professores
habilitados para exercerem as atividades de ensino, freando, portanto, a efetiva implantação
de uma educação escolar nesta região.
Mostrando-se muito limitado o ensino jesuítico no Piauí, possibilitou a busca de
alternativas ao ensino oficial. Com uma economia baseava na pecuária, consideravase
que a sociedade piauiense não necessitava de formação de mão-de-obra qualificada pela escola,
florescendo, assim, outras experiências, principalmente ligadas ao meio rural. De que forma
isso se manifestou e influenciou a história político-social do estado do Piauí é igualmente uma
das finalidades deste trabalho. Por isso, ao relacionar-se com o modelo econômicosocial 
piauiense nos séculos XVIII e XIX, procurou-se colaborar para a melhor compreensão da
História da Instrução Pública do Estado Piauí: o processo de colonização para que possamos compreender a constituição do ensino formal no Piauí colonial e imperial, não podemos dissociá-lo
do contexto histórico-econômico da época, pois não há como separar a Instrução Pública do processo colonizador Estado.
Em seus primeiros séculos de existência política, o Piauí apresentou lenta transformação
em sua estrutura econômica, o que influenciou na organização social do Estado. Analisar seu
processo colonizador se faz necessário em razão da série de preconceitos que foram
constituídos no que se refere ao período colonial brasileiro, que tende a ‘simplificar’
estruturas extremamente complexas, como foi o Brasil colonial, reduzindo este a latifúndio,
monocultura e trabalho escravo (CARDOSO, 1996).
A historiografia tradicional convencionou a idéia de que a expansão da pecuária no
sertão nordestino se relaciona unicamente à expansão da empresa açucareira na zona da mata
nordestina, que, em um segundo momento se especializa, mantendo estreita relação com a
produção do açúcar. Somente em um terceiro momento, as fazendas de gado se desligaram
dos engenhos (CARDOSO, 1996). O Piauí, teria surgido neste terceiro momento 1 .
A região do atual estado do Piauí teve o início de sua ocupação na segunda metade do
século XVII, como passagem de expedições entre Pernambuco e o Maranhão. Por volta de
1660, a região do Piauí começa a ser objeto de penetrações mais intensas, principalmente por
bandeirantes paulistas apresadores de índios 2 e fazendeiros baianos que combatiam os
indígenas. Assim, “a primeira atração oferecida pelo Piauí é, pois, o índio, objeto de caça, que
se prestava não somente a servir como mão-de-obra escrava, mas que era peça fundamental
como elemento militar” (CEPRO, 1979, p.15).
Em seu primeiro século, o Piauí não possuía delimitações precisas, mas apresentava
condições físicas excelentes para a criação do gado – pastos naturais, recursos hídricos e
salubridade do clima – e relativa oferta de produtos coletáveis de caça, facilitando a
sobrevivência da população, fatos atestados pela grande quantidade de tribos indígenas 3
fixadas na região 4 e a possibilidade de penetração linear do território que, diferente de facilitar
a comunicação, facilitou sua exploração e fixação (CEPRO, 1979).
O modelo econômico implantado no Piauí exigia pouca especialização de sua mãodeobra,
em que a intervenção humana era mínima. A instalação das fazendas de gado exigiam,
no entanto, amplas áreas de terras, surgindo assim extensos latifúndios no Piauí, presença que
ainda se faz sentir, e que para serem instaladas deveriam ser “conquistadas” dos povos
indígenas que aqui habitavam. Observa-se, assim, a necessidade da formação de verdadeiros
exércitos para implementarem “guerra justa” contra o indígena.
O que observou-se,  que “o desenvolvimento da economia pecuária se faria a par com
outra atividade, o apresamento de índios” e “a pecuária piauiense criou, para sobreviver e se
consolidar, uma capacidade de infensibilidade às crises do mercado consumidor superior à
capacidade de outras áreas da pecuária nordestina” (CEPRO, 1979, pp. 202), com a exigência
de pequenos investimentos e um sistema escravista peculiar à sua realidade, marcada pela
subsistência do mercado e luta pela posse da terra 5 .
Seu formato sui generis de colonização, associado a idéias sem muita propriedade da
sociedade estabelecida no Piauí, fizeram surgir concepções de que as relações sociais no Piauí
seriam mais brandas e com pequena diferenciação, em que o vaqueiro e o fazendeiro pouco se
distinguiam. Longe de buscarmos aprofundar discussão tão complexa, gostaríamos de
sinalizar para a simplicidade do raciocínio, que desconsidera uma série de peculiaridades da
sociedade piauiense de seus primeiros tempos, que permaneceu por longo período entre cuidar
do gado e combater os índios, que fez florescer uma sociedade em que as funções militares de
fazendeiros, vaqueiros e escravos se faziam muito presentes, levando umas poucas centenas
de homens a dizimarem dezenas de tribos indígenas (CEPRO, 1979), fazendo surgir assim,
uma sociedade em que seu cotidiano não perpassa pelo ensino formal.
Experiências educacionais na Capitania, Província e Estado do Piauí, a educação formal nunca foi posta como prioridade de seus governantes, e se dera “de modo lento, insuficiente para o atendimento da população e permeada de criações e extinções de escolas, devido a própria organização da produção e do trabalho neste Estado e ao modo como este vai se povoando” (LOPES, 1996, p.39).
De acordo com Lopes (1996), a historiografia local não chega a um consenso sobre o momento da implantação das primeiras escolas no Piauí, que mesmo contando com “efêmeras tentativas de escolarização, podesedizer que até o final do século XVIII inexistiram escolasno Piauí” (LOPES, 1996, p. 40). No Piauí, os Jesuítas, de importante papel na educação do Brasil Colônia, tiveram
atuação muito limitada, das quais duas iniciativas destes podem ser apontadas. Em 1711, os
inacianos recebem em testamento 39 fazendas de gado de Domingos Afonso Mafrense, em território piauiense, que logo se multiplicam. A princípio, as fazendas ocupam a atenção dos
religiosos que só em 1733, passam a se preocupar com a educação, conseguindo um alvará de
funcionamento de um estabelecimento de ensino denominado ‘Externato Hospício da
Companhia de Jesus’, não logrando êxito em razão das dificuldades de instalação, tais como, pobreza do meio, dispersão demográfica e distância dos núcleos populacionais e dificuldades de comunicação. Uma segunda iniciativa inaciana ocorre em 1749, organizando o Seminário do Rio Parnaíba, na atual cidade de Oeiras. No entanto, as lutas pela posse da terra e domínio das populações indígenas, além da persistência de dificuldades já apontadas, motivam a
transferência do seminário para Aldeias Altas, hoje cidade de Caxias (MA), deixando novamente o Piauí sem nenhuma escola. (BRITO, 1996).
Para explicarmos a inexpressiva atuação dos Jesuítas na educação em solo piauiense,
recorremos ao professor Itamar Brito, que aponta como motivos:
a) A tardia fixação da Ordem em território piauiense. Havendo chegado ao Brasil em 1549, só na segunda década do século XVIII se estabelecem no Piauí, movidos por interesses pecuniários: as fazendas de gado.
b) A reorientação da Ordem em relação às atividades desenvolvidas na Colônia (1996, p.14). A fixação dos Jesuítas no Piauí ocorre em um momento em que estes concentravam esforços na criação de seminários, explicando assim a criação do Seminário do Rio Parnaíba, em lugar de escolas primárias e o fracasso da iniciativa face às condições adversas da Capitania (BRITO, 1996). Não obstante, “o ensino, com os conteúdos de leitura e escrita, e até de latim, pouco interessava a uma população de vaqueiros e homens da terra. O ensino, dissociado da realidade, não oferecia atrativos ao povo, que não sentia a necessidade de tais conhecimentos” (FERRO, 1996, p. 58). Apesar do fracasso Jesuíta, a coroa somente veio criar duas escolas primarias na Vila da Mocha, por meio do Alvará de 03 de maio de 1757, sendo estas, de acordo com Pereira da
Costa (1974), as primeiras escolas públicas do Piauí, uma destinada para meninos e uma para
meninas, esta última, acrescentando em seu currículo, atividades domésticas. Deve-se lembrar
que ambas não lograram êxito.Também devem ser destacados os baixos salários dos professores em toda a História daEducação no Piauí, uma vez “que pessoas habilitadas, quase sempre abastadas, não sepropunham a exercer a função. Assim, as cadeiras, se providas, em pouco eram abandonadas, donde as contínuas vacâncias a oferecer oportunidade a professores sem habilitação”(NUNES, 1974, p. 56), não sendo estranho, em seu início, o pagamento dos professores em paneiros (cestos) de farinha, fato comum nas transações comerciais da época. Assim, estas primeiras escolas não obtiveram êxito, tendo sua curta existência atribuída à falta de professores habilitados para ministrarem as aulas e a falta de recursos financeiros para a
manutenção das escolas (BRITO, 1996).
O que podemos também observar, de acordo com Lopes (1996), é que, o ofício de professor público de primeiras letras não atraía as pessoas da época, por conta do tipo e trabalho, do status do mesmo e do salário que recebia. Como conseqüência as escolas que eram criadas não funcionavam ou funcionavam por pouco tempo dada a ausência de pessoas interessadas em ocupálas(p. 52).
A preocupação do Estado com a educação era mínima, na realidade sua ação “limitavase
a criar as escolas e pagar os ordenados dos professores, sem proporcionar condições de
funcionamento às mesmas. Na verdade, a escola não interessava ao Estado, o qual a
considerava com a mera finalidade de moralização e disciplinamento da população” (LOPES,
1996, p. 53).
Evento que ilustra bem como se encontrava a educação no Piauí no século XVIII, é quando o primeiro presidente do Piauí, João Pereira Caldas, em 1759, não encontrando habitantes capazes de assumirem cargos no regimento de cavalaria do Piauí, escreve ao CapitãoMor do Pará e Maranhão, decepcionado com o estado de ignorância em que vivia a população piauiense, sem nenhuma escola oficial, situação que em 1797 ainda persistia e leva a Junta de Governo da Capitania a apelar mais uma vez à Coroa para a criação de pelo menos uma cadeira de instrução primária, que teve como um de seus argumentos ser a falta de escolas a responsável pela “rusticidade” e “ignorância” do povo.
O apelo feito pela Junta Governativa em 1797 não foi ouvido, como também não o foi o
apelo feito em 1805. Somente em 1815 são criadas três escolas de primeiras letras na
Capitania – uma na cidade de Oeiras, uma na Vila de Parnaíba e uma na Vila de Campo
Maior – que se acredita não chegaram a funcionar em razão da carência de recursos
financeiros para a educação, conseqüentemente com baixos salários oferecidos e carência de
professores habilitados.
A falta de pessoas habilitadas ao magistério, tem como um de seus fatores o isolamento
do Piauí em relação ao restante do país, face ao seu processo de colonização, em que os
intercâmbios culturais, educacionais e até econômicos foram mínimos com outras regiões.
Deve ser lembrado também que a economia baseada na pecuária não demandava formação de
mãodeobra
por intermédio da escola. Somente a administração pública necessitava destes
quadros (BRITO, 1996).
Como nos lembra Monsenhor Chaves, “o povo, em geral, não se interessava muito em
que seus filhos aprendessem a ler e a escrever. Por seu lado, os meninos temiam a escola, que
não era absolutamente risonha e franca” (1998, p. 33), em que o uso de castigos físicos não
era estranho. O modelo pedagógico que tínhamos, baseava-se na autoridade do professor, que
se valia de métodos como o bêabá cantado e a palmatória (QUEIROZ, apud COSTA FILHO, 2000), esta última sendo abolida oficialmente pela Reforma autorizada pela Lei n.537, de 2 de julho de 1864, mas sendo encontrada seu uso ainda no século XX. Na realidade, o que percebemos é que, no caso da sociedade piauiense, “a escola tem pouco espaço nessa organização social, onde o trabalho principal não exigia o saber formal (escolar) mas o do mando e da organização do trabalho na pecuária” (LOPES, 1996, p. 49).
Durante o Império, o quadro da educação piauiense pouco mudou ou, em alguns momentos, piorou. Com a Constituição de 1824, o Império determina a gratuidade do ensino, mas se
mostrou uma lei inócua, não diferente no caso do Piauí e agravado com a decisão da Assembléia Geral de adotar nas escolas das Províncias o método de ensino Lancaster 6 , com o objetivo de atender a um maior número de alunos com menores custos. Método, contudo, desconhecido dos poucos professores da Província do Piauí. Em 1824, os gastos com a educação oficial no Piauí eram mínimos, contando apenas com três escolas primárias – Oeiras, Campo Maior e Parnaíba – e duas cadeiras secundárias de latim – Oeiras.
A educação no Piauí continuava esbarrando em dois entraves já citados: falta de recursos para a educação e de pessoas qualificadas para o magistério. Buscando atender as determinações imperiais é feito um levantamento sobre as localidades que necessitavam de escolas de primeiras letras. De acordo com os critérios estabelecidos foram criadas “escolas nas vilas e povoados Poti, Barras, Piracuruca, Piranhas e Jaicós, além de duas na cidade de Oeiras. ... Criam-se também na mesma oportunidade três cadeiras de latim em Oeiras, Parnaíba e Campo Maior” (BRITO, 1996 p. 21). Em 1845, o Piauí contava com 16 escolas públicas, de ensino primário, para o sexo masculino – 340 alunos – e três para o sexo feminino – 41 alunas (NUNES, 1974).
Em Teresina “quase que só os meninos da classe média iam às aulas da Província. Os meninos ricos estudavam de preferência nas escolas particulares, onde o aproveitamento era mais rápido e sensível” (CHAVES, 1998, p. 33), cidade esta que contava com escolas particulares de afamada reputação. O Piauí, com uma educação extremamente precária, encontrava no movimento da Balaiada um outro momento de dificuldade. Envolvidas nas batalhas que atingiam grande parte do território piauiense, as autoridades desviavam atenção e recursos. Dentro deste
quadro, a educação é novamente abandonada e ademais os poucos professores se envolveram de alguma forma com a guerra, abandonando as escolas. Dominada a ‘balaiada’ pelas tropas sob o comando do Cel. Luiz Alves de Lima e Silva, mais tarde Duque de Caxias, hoje patrono do Exercito brasileiro, a Província estava praticamente sem escolas públicas, registrandose apenas a existência de algumas escolas particulares (BRITO, 1996 p. 223). Em razão da precária situação do ensino público no Piauí, surgiram inúmeras iniciativas privadas, que encontram na figura de Pe. Marcos de Araújo Costa uma de suas significativas experiências. Em 1820, Pe. Marcos, descendente de família portuguesa, abandona a capital piauiense e organiza em sua fazenda de nome Boa Esperança, a 12 km da antiga aldeia de Cajueiro – atual cidade de Jaicós – um estabelecimento de ensino primário e secundário, recebendo, gratuitamente, alunos de diferentes classes sociais, transpondo os limites do Piauí e atraindo alunos de províncias vizinhas. Segundo Anísio Brito (apud NUNES, 1974) paralelo à experiência de Pe. Marcos, existia um ensino oficial que se encontrava paralisado, com escolas insuficientes e carentes de professores e sem despertar o menor interesse dos poderes públicos. Em mensagem aos deputados, pela passagem da morte de Pe. Marcos, em 1850, o então Presidente da Província, Antônio José Saraiva, afirma: “A morte do reverendíssimo Padre Marcos, que encheu de dor a todos os corações piauienses, fechou as portas da única casa de educação que esta Província possuía” (apud NUNES, 1974, p. 52). Podemos destacar ainda a experiência de Pe. Francisco Domingos de Freitas e Silva que, em sua propriedade, na atual cidade de Piripiri, funda uma escola primária e curso de latim. Além destes, outros sacerdotes desenvolveram trabalhos bem sucedidos, mas sem a mesma amplitude. A experiência de Pe. Marcos estimula o surgimento de outras escolas mantidas por iniciativa privada de clérigos e de proprietários rurais interessados em oferecer as primeiras letras aos filhos. Assim surgem vários professores ambulantes ou mestresescolas que
ministraram aulas nas casas dos proprietários rurais ou em locais adaptados, sendo estas
escolas predominantemente rurais (BRITO, 1996).
Odilon Nunes contabilizou que no ano de 1844 a Província do Piauí contava com, pelo menos, 28 escolas particulares: Encontramos em papéis de 1844 arquivados na Casa Anísio Brito o registro destas escolas localizadas mais na zona rural que nas sedes municipais. Em Valença, por exemplo, havia 9 escolas particulares, em Barras 7, Piracuruca 3, em Príncipe Imperial 2, uma na sede e
outra em Pelo Sinal, Parnaguá com 7 distribuídas pelos povoados assim: 4 em Paraim, uma em Gilbués, uma em Curimatá e outra, certamente na sede municipal. Provavelmente tinham escolas particulares em todos os municípios (1974, p. 48). Para o professor Costa Filho (2000), as formas alternativas de ensino formal eram uma constante no Piauí do século XIX que, paralelamente ao ensino oficial, desenvolveramse experiências capazes de atender aos interesses dos diferentes grupos sociais. Exemplo é o sistema dos mestres ambulantes que se deslocavam pelas cidades, vilas e povoados, ensinando ler, escrever e contar, além de outras práticas cotidianas necessárias à sobrevivência individual e coletiva. Para este autor, no século XIX, o sistema oficial de ensino logrou êxito, pois atendeu aos interesses dos grupos sociais de elite, fim pelo qual foi criado. De acordo com o professor Itamar Brito (1996), o ano de 1845 marca um novo momento da educação no Piauí, chamado de “Período de Estruturação”, com a posse de Zacarias de Góis e Vasconcelos como Presidente da Província. Na administração de Zacarias de Góis, buscouse pela primeira vez, por meio da Lei n.198, de 4 de outubro de 1845, normatizar a rede escolar e darlhe estrutura adequada, criou-se o cargo de Diretor da Instrução Pública, definiram-se os critérios de funcionamento da rede escolar e admissão de professores e, finalmente, instalou-se o primeiro estabelecimento de instrução secundária da Província, o Liceu, em Oeiras, que recebeu o nome de Colégio Estadual do Piauí e hoje denominado Colégio Estadual Zacarias de Góis, em homenagem a seu fundador. Também com Zacarias de Góis, é estabelecida a obrigatoriedade do ensino, de 7 aos 10 anos para meninas e de 7 a 14 anos para meninos. Assim, a Província buscava solucionar a irrisória matrícula e freqüência nas escolas públicas. No entanto, era “uma medida inócua, inexeqüível, pois os recursos humanos e financeiros disponíveis não ofereciam condições para a instalação e manutenção de uma rede escolar capaz de atender a toda a população nas faixas etárias mencionadas” (BRITO, 1996, p. 27). Para Zacarias de Góis, a Reforma instituída pela Lei n. 198 possibilitou uma direção uniforme para o ensino e a criação de escolas de primeiras letras que oferecessem condições de funcionamento, assim como a criação de várias cadeiras de ensino secundário. No entanto,“[Zacarias de] Góis e Vasconcelos sancionou e publicou a lei que havia apresentado à Assembléia Legislativa, mas em verdade pouco faz pela sua execução” (NUNES, 1974, p.51).
A criação e vida do Liceu ilustram como se encontrava o ensino no Piauí, já iniciando sua existência com problemas não estranhos à realidade educacional piauiense, como falta de recursos para a instalação do estabelecimento e carência crônica de professores: até 1850 poucas cadeiras foram supridas e as que chegaram a funcionar eram instaladas na própria residência do professor e contavam com matrícula irrisória, cerca de três alunos em média, segundo estimativa do Presidente Antônio Saraiva. Em sua mensagem à assembléia Provincial, em 3 de julho de 1851, Saraiva chega a afirmar: ‘Pode-se dizer que o Liceu existia apenas na Legislação’ (BRITO, 1996, p. 25). A carência de professores encontra forte motivo nos baixos salários pagos, demonstrando o quanto este aspecto tem se mantido na história educacional piauiense. Com o objetivo de dar-lhe melhores condições de funcionamento, em sua administração, Saraiva aluga uma casa para as atividades do Liceu, mas, transferida a Capital de Oeiras para Teresina, as aulas desta escola retornam às casas dos professores. Logo após, este estabelecimento de ensino também é transferido e “continuava sua débil vida em Teresina”
(NUNES, 1974, p. 54), chegando a ser extinto em 1861, só restaurado em 1867. Devemos ainda fazer referência a uma experiência de alfabetização de adultos voluntária em Teresina, criada em 12 de novembro de 1869, na casa do Sr. Deolindo Mendes da Silva Moura, com o objetivo de alfabetizar rapazes e homens feitos, com aulas noturnas. Não se sabe ao certo seu fim, mas que sua criação causou grande mobilização popular (CHAVES, 1998).
Outro evento que merece destaque foi a movimentação para a fundação de um Seminário Menor em Teresina, que recebe apoio do Presidente da Província, então Dr. Luna Freire, mas que não foi adiante. O que se observa é que durante o Império, ocorreram sucessivas reformas do ensino na Província, sem contudo, alterar sua fisionomia, com vista a resolver seus problemas, mas que
sempre se deparavam com a falta de recursos e carência de professores. Nas palavras do professor Anísio Brito, “Várias, inúmeras as reformas, diversas leis, modificando, alterando o
ensino público. Ensino obrigatório e outras providências construíram interessantes textos legais, não logrando resultado positivo” (apud NUNES, 1974, p. 59). No que se refere à carência de professores, esta não era exclusividade do Piauí, o que resultou, já na primeira metade do século XVIII, na criação de escolas normais. No Piauí, a primeira Escola Normal data de 3 de fevereiro de 1865, em cumprimento à Lei Provincial n.365, de 5 de agosto de 1864.
A primeira Escola Normal teve vida efêmera. Odilon Nunes encontra na cobrança de uma ‘jóia’ – taxa – um dos motivos para o seu insucesso. Se “procura logo estimular os professores com uma vantajosa gratificação, mas instituiu uma jóia de 80$000 por ano que deveria ser paga pelo aluno em quatro prestações” (NUNES, 1974, p. 294), ao instante em que, em 1862, a escola particular de “afamada” reputação de Miguel de Sousa Leal Borges Castelo Branco, cobrava uma mensalidade de 2$000 (CHAVES, 1998). O então Presidente da Província, Luna Freire, em relatório à Assembléia Legislativa, em 1867, informa que, em virtude desta ‘jóia’, na Escola Normal não havia alunos matriculados, somente alunos ouvintes, e mesmo posteriormente sendo dispensada esta ‘jóia’, o curso normal não floresceu, “assim, com tamanha despesa e nenhum rendimento, pois no ano de 1866 não se apresentou nenhum aluno para exames, foi extinta a escola normal pela Resolução n. 599, de 9/10/867, que restaura, entretanto, o Liceu, numa tentativa de dinamização do sistema escolar” (NUNES, 1974, p. 294). A saída do Presidente da Província, Dr. Franklin Dória, seu fundador, “determinou a morte da escola, que vivia exclusivamente do apoio incondicional que ele lhe prestava” (CHAVES, 1998, p.36).
O Ensino Normal é restabelecido em 1871, agora funcionando anexo ao Liceu e com currículo de três anos – originalmente o currículo era de dois anos. Esta segunda tentativa também teve vida breve, sendo extinta por resolução de 1874. Em 1882, uma nova tentativa é feita, agora com currículo de apenas dois anos, como forma de apressar a formação de professores, sendo extinta por meio de Resolução de 1888.
De acordo com Odilon Nunes (1974), o insucesso das escolas normais durante o Império se dá em função de sua “prematuridade”, que tem como causa original a fragilidade econômica, preconceitos sociais e dispersão econômica. O Liceu, mesmo com seus problemas, atraía de longas distâncias os filhos de pais ricos. No entanto, as filhas não podiam ficar longe das vistas paternas, tendo acesso, quando muito, às primeiras letras ministradas em escolas particulares, muitas em fazendas, sendo difundido este tipo de ensino pelo Piauí que, em muitos municípios, superavam o número de escolas públicas.
Esperava-se que, com a República, houvesse um revigoramento do ensino no agora Estado do Piauí, iniciando-se pela formação de professores. No entanto, apesar dos insistentes apelos, o que era esperado não ocorreu, pois os legisladores, continuavam com suas vistas voltadas para outros problemas e quando cuidavam do ensino era para aplicar novas normas ou fazerem reformas quase sempre inexeqüíveis, pois não encontravam ressonância no espírito de um professorado leigo e de poucas luzes, sem bastante conhecimento e formação para compreendêlas(BRITO, 1996, p. 34).

Conclusão
Ao olharmos para este breve e limitado retrospecto da História da Educação do Piauí, percebemos que a falta de recursos e a carência de profissional marcaram a história educacional Estado nos períodos colonial e imperial, observando-se a considerável distância entre a estrutura legal e a estrutura real do ensino, aspectos inclusive destacados pelo professor Itamar Brito (1996). No último Relatório do período monárquico, apresentado em 1889, o Presidente Dr. Raimundo Vieira da Silva, afirma: As escolas públicas da Província, com exceção da Capital, são verdadeiros albergues. Nelas não existem os utensílios necessários que dão alegria aos alunos e vontade de ensinar ao professor. Em quase todas nota-se o desânimo, o indiferentismo, o atraso, o aniquilamento da instrução pública primária, devido à negligência do nosso governo que não tem sabido curar deste importante ramo do serviço público (NUNES, 1974, p. 298). O que percebemos é que também o ensino público não era prioridade, e que “o elemento de realidade estava posto pela situação financeira da Província e a não prioridade da educação nas políticas públicas locais. Este fato é responsável pelo lento espalhar-se da rede pública escolar e por suas idas e vindas, em termos de criação e fechamento de escolas” (LOPES,1996, p. 545). No entanto, para além da inexistência de recursos financeiros e carência de professores qualificados, situação esta que vem perdurando e pouco mudou na realidade piauiense, o que mais prejudicou a estruturação da Instrução Pública no Piauí, foi a falta de vontade política de muitos de seus governantes.
Notas:
1 Deve ser destacado que, estudo da Fundação CEPRO (1979), aponta que a expansão do gado em solo piauiense não se liga à expansão da empresa açucareira e sim à sua crise. A empresa açucareira esteve mais ligada expansão dos currais ao instante que liberou mãodeobra.

2 Deve ser salientado que as bandeiras paulistas, pelo seu próprio caráter apresador, não se fixaram em solo piauiense, o que ocorreu pelos fazendeiros vindos da Bahia, sendo estes os primeiros agentes do povoamento das terras piauienses, estimulado pela abundância de terras que poderiam ser reivindicadas como sesmarias e a presença de alguma mão-de-obra que podia ser utilizada .

3 As principais tribos que ocupavam o Piauí, ou de que se tem noticias, no início de sua colonização, de acordo com Chaves (1998), eram: ‘Abetiras’, ‘Beirtas’, ‘Coarás’, ‘Nongazes’, ‘Rodoleiros’ e ‘Beiçudos’ (cabeceiras do Gurguéia); ‘Anaissus’ e ‘Alongares’ (serra da Ibiapaba); ‘Arairés’ e ‘Acumês’(cabeceiras do rio Piauí);‘Aranhis’ e ‘Cratéus’(cabeceiras do Poti); ‘Aroaquises’ e ‘Corapotangas’ (chapada da Mangabeiras); ‘Aroases’(riacho Sambito); ‘Aroquanguiras’, ‘Copequacas’, ‘Cupicheres’, ‘Aranheses’, ‘Aitetus’ e ‘Corerás’ (médio Parnaíba); ‘Bocoreimas’, ‘Corsiás’ e ‘Lanceiros’ (extensão do Gurguéia); ‘Coaretizes’ e ‘Jaicós’(vale do Gurguéia); ‘Cupinharós (rio Canindé); ‘Gamelas’, ‘Genipapo’ e ‘Guaranis’(margem do Parnaíba, antes de se retirarem para o Maranhão); ‘Gueguês’(região central do Estado); ‘Pimenteiras’(limites com Pernambuco); ‘Prebetizes’(rio Uruçuí); ‘Putis’(foz do rio Poti); ‘Tremenbes’(baixo Parnaíba e delta do Parnaíba); ‘Ubatês’, ‘Moatans’, ‘Junduins’, ‘Icós’ e ‘Urires’(serra do Araripe). As tribos que não fugiram do Piauí, foram exterminadas.

4 Também é importante lembrar que, mesmo com a presença das secas, fenômeno constante no Piauí, esta Província tinha uma capacidade maior de resistência à seca, assim, seu gado era procurado para reconstruir os criatórios e outras áreas do nordeste após estiagens prolongadas.

5 Devemos lembrar que o processo de devassamento das terras do Piauí foi marcado pela luta pela posse da terra, em que os grandes proprietários de terras, que tinham recursos para investir em seu início, se deparam com a disputa de terras com vaqueiros, arrendatários e posseiros, marcando a expressão do valor da terra para esta população, sinalizando no século XVIII para a vitória dos interesses locais de vaqueiros, posseiros e arrendatários, dando início a toda uma oligarquia proprietária de terras e verdadeiramente piauiense.

6 O método de Lancaster ou de Ensino Mútuo, buscava que o professor atingisse o maior número de alunos através do uso de monitores, que eram alunos mais adiantados que orientavam alunos mais atrasados.

Bibliografia Citada:

BRITO, I. S. História da Educação no Piauí. Teresina: EDUFPI, 1996.
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COSTA, F. A. P. Cr onologia histórica do Estado do Piauí. Rio de Janeiro: Artenova, 1974. 2 v.
FERRO, M. A. B. Educação e Sociedade no Piauí Republicano. Teresina: Fundação Cultural Mons. Chaves, 1996.
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MONSENHOR CHAVES. Obra completa; Prefácio de Teresinha QueirozTeresina: Fundação Cultural Mons. Chaves, 1998.
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PIAUÍ. Piauí: evolução, realidade e desenvolvimento. – Teresina: Fundação CEPRO, 1979.